Uma grande discussão que se faz entre os intelectuais do batuque hoje em dia é em torno do sincretismo religioso. Esses intelectuais se perguntam se a religião de matriz africana deve ou não propagar a idéia sincrética.
Mas afinal o que é sincretismo? É a fusão de crenças e práticas religiosas distintas, assim como de culturas decorrente das conquistas de um povo sobre outro, fato muito comum na antigüidade. Quando Alexandre o Grande (séc. IV a.C.) dominou o Egito se autoproclamou faraó, assumindo uma descendência divina, assim como em cada povo que ele conquistou. Outro exemplo é o Império Romano que trocava deuses com os povos vencidos para promover uma melhor aceitação de seu domínio. O fato é que religiões a serviço de Estados desenvolvem uma atitude de tolerância na relação com os povos submetidos para que assim possam dominá-los.
O professor de História da UFRGS Luiz Dario Ribeiro, em curso de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na FAPA, salientou que a igreja católica, para dominar a Europa pagã que cultuava a Deusa Mãe em várias regiões, teve que substituí-la pela Virgem Maria, afim de se auto-afirmar como religião dominante, o que fez surgir as mais de 400 denominações para a santa. Essa idéia se manteve durante todo o período em que esta vertente cristã foi partícipe do poder político dos Estados europeus e posteriormente nas colônias americanas.
No Brasil não foi diferente.
A primeira tentativa e, aliás, bem sucedida foi com os indígenas.
Em sua obra “1492: o encobrimento do outro”, Enrique Dussel afirma que “do ponto de vista de seu mundo mítico, depois da derrota, seus deuses haviam sido vencidos ‘no céu’, já que vencidos estavam os exércitos índios ‘na terra’, no campo de batalha. O imaginário indígena devia incluir – como era costume, por outro lado, os deuses vencedores”. Ou seja, era muito mais fácil impor a doutrina católica aos indígenas, pois fazia parte da cultura deles adotarem os deuses dos povos que os dominassem. O mesmo não ocorria com certas etnias africanas que possuíam uma cultura muito forte, como os iorubás.
Parece obvio que foram os padres quem introduziram os santos católicos na religião africana para fomentarem a crença cristã nos escravizados. Inteligentemente esses negros fingiram aceitar isso para que assim pudessem praticar sua religião sem ser incomodados pelos capatazes. Apesar disso existe uma vertente de estudiosos que disseminou a crença de que o sincretismo partiu dos próprios africanos para poderem esconder os assentamentos dos orixás. Essa teoria me parece um tanto frágil, afinal como poderiam esses africanos conhecer os santos católicos tão bem para fazer as associações? Os defensores dessa teoria não sabem a resposta, apenas se defendem afirmando que ser contra essa teoria é acreditar que eles não eram inteligentes o suficiente para fazerem isto, o que, a meu ver, é uma atitude evasiva dos que querem defender na verdade a igreja católica, a verdadeira culpada por criar e manter o sincretismo. É extremamente conveniente para a igreja que o sincretismo se perpetue, assim eles sempre terão as igrejas cheias nos dias de Santo Antônio, São Jorge e na passeata de Navegantes mantendo a esperança de converter os pagãos (nós) à religião única e verdadeira: o cristianismo.
Os pejis, assim como nossas liturgias, estão cheios de sincretismo. O “quarto-de-santo” era na verdade um oratório católico existente até hoje nas antigas casas de fazendeiros, onde tinham um altar expondo santos católicos em prateleiras. Esses oratórios existiam em todas as casas porque as igrejas ficavam muito longe e era comum o padre vir celebrar casamentos e batizados nas casas desses ricos fazendeiros. Havia um quarto-de-santo também nas senzalas, que logo foram utilizados para esconderem os assentamentos dos orixás. Eles simplesmente escondiam os orixás embaixo do santo que os próprios padres lhes ensinaram que eram representados. Por isso se mostrarmos aos mais velhos da religião uma imagem de Santo Antônio, São Jorge ou Nossa Senhora dos Navegantes e lhes perguntarmos quem são, eles dirão com plena convicção que se trata de Bará, Ogun e Yemanjá.
Outro sincretismo está nos dias de comemoração dos orixás.
O dia de Bará não é 13 de junho, assim como o de Ogun e Yemanjá não são, respectivamente, 23 de abril e 2 de fevereiro. Esses são dias dos santos católicos.
Os dias de nossos orixás são aqueles em que se comemoram o aniversário de seu assentamento, e isso varia de filho para filho, de casa para casa.
A obrigação da semana santa também é sincrética, afinal a semana é santa para católicos, porquê o batuqueiro tem que celebrar a paixão de Cristo, o sábado de aleluia e o domingo de páscoa?
Outro exemplo são os próprios assentamentos dos orixás:
no de Bará vai uma chave, objeto que São Pedro carrega em mãos nas imagens; a ferradura de Ogun deve ser referente ao cavalo de São Jorge; a coroa e a taça são de Iansã ou de Santa Bárbara? No de Xangô tem um livro e uma caneta, objetos de São Jerônimo; na vasilha de Obá encontramos uma roda e uma navalha, o flagelo de Santa Catarina; e por aí vai.
O leitor deve ter percebido que eu estou falando, verdadeiramente, é de identidade.
O batuqueiro tem sua própria identidade e pratica uma religião que é cem porcento independente de qualquer outra.
A nossa religião não precisa de imagens católicas, de prateleiras cobertas com cortinas para esconder nossos orixás, nem de batismos e casamentos em igrejas.
Assuma a tua identidade enquanto batuqueiro. Batize teus filhos no teu ilê com teu sacerdote, afinal, como diz meu pai-de-santo, se a religião é boa pra ti porque não é para teus filhos?
Case com as bênçãos dos orixás do teu ilê e não com a bênção de um deus discriminatório e preconceituoso; cumpra com tuas obrigações e adore a divindade que está no ocutá, não a imagem de gesso.
Não há mais a necessidade de mantermos esse sincretismo.
No passado ele serviu para nos proteger, mas hoje ele só faz diminuir a nossa religião.
Existem aqueles que não reconhecem a necessidade de uma releitura em nossos fundamentos. Eles são adeptos do uso do tradicional, ainda que essa tradição tenha sido deturpada ao longo dos séculos.
Eles pensam que mudança é sinônimo de destruição, mas pensem comigo:
qual é a tradição mais antiga, a de cem anos atrás ou a de mil anos atrás?
Reafricanizar é tornar as religiões de matriz africana o mais próximo possível da própria África. Isso não a destruirá, pelo contrário, a fortalecerá enquanto cultura, enquanto religiosidade, enquanto identidade.
Artigo publicado na Revista Bom Axé.
Edição 17. Enebe. Janeiro/2006. Pág. 12
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